sábado, 26 de julho de 2008

Dúvida cruel (encróstico)

Deveria eu por acaso
úmido de chuvoso
ver graça
individualmente, se
desde a mais tenra infância quando somos instruídos a não saber, sabemos que
acrósticos são coisas de crianças mancas do lóbulo esquerdo
ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!

Caralho!
Rabo!
Urso!
e
lefante...


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Raízes do Brasil

Na novela que passa, a menina pergunta em tom áspero para o seu irmão, também adolescente:

- E de onde é que você tirou que quando você ama qualquer desejo some? Ele, do alto de sua dignidade, comprada com o suor de seu rosto, sai pela tangente, gritando esganiçadamente:

- Vai tomar no cu! Não disse isso! Não devo explicações! Não! Não! Não! E num átimo agarra a irmã e pula pela janela do décimo segundo andar.

Close na televisão ainda ligada na sala do apartamento. Um comercial anuncia que uma dupla sertaneja - cujo maior sucesso é uma versão em português de um sucesso pop norte-americano - vai apresentar-se esta noite num programa chamado Raízes do Brazil.

A seguir a sala vazia assiste o anúncio de que o famoso músico latino-americano Celeuma Baptista assinou contrato com a Murder, e fará num filme o papel de um músico tão sensível que chora ao pensar em cortar as unhas.

O barulho lá fora só faz aumentar, e então a câmera mostra o desespero de uma mulher de meia idade, lutando para afastar um repórter do programa Cidade Aberta do que restou de seus filhos. Ela tem as veias do pescoço saltadas, e grita, enquanto populares a seguram e afastam do jornalista, que está acabando de especular sobre acerto de contas ou abuso de drogas.

Desligo a televisão assim que a cena acaba. Preciso escrever os próximos capítulos.

Mal principio a digitar o telefone toca, me propondo uma saída honrada ou demissão e escárnio público. Sigo o exemplo de meu personagem e me atiro do décimo segundo andar. Antes do baque final, penso que não haverá repórteres, pois a segurança os afastará.

E corta.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Postagem Original do Nossogalfio

sábado, 19 de julho de 2008

No meio do caminho, parada pra escrever

Em meio ao traçado
do espaço coletivo
partes de uma vida
que não se soube viver.

Entre flores de figueiras
recém-amarelecidas
registros da memória
de um ser que se esqueceu.

Entre os carros vagarosos
de alunos de auto-escola
lembranças de antigos dias
em que os dirigia eu.

Sob a sombra das figueiras
sobre as flores caídas
imagens do acidente
em que em mim teu sim morreu.

Paulo Eduardo de Freitas maciel de Souza y Gonçalves

Demônios intangíveis

A vida é feita de pequenas bengalas. O início deve ser original, e o final desconcertante.
Mas é difícil fugir da linguagem comum, dos termos e temas constantes e repetitivos, e a bem da verdade, inovação não deve ser lá tão importante...
Vestir, conversar, namorar.
Comer, dormir e cagar.
Para cada verbo, uma normatização estrita, de caráter classificatório e eliminatório.
Quando mais idealista, imaginei escapar à grande engrenagem que é meio e fim em função do qual nascemos e morremos.
Aprender seus ritmos e compassos, e fazer da própria vida uma nota dissonante.
Mas não há ritmos ou compassos definidos. Inteirar-se do dominante é perceber outros, infindáveis, longínquos e inesperados. Mesclando-se.
Dispendemos mais tempo fingindo que fazer da vida uma obra de arte exige técnica e abnegação, do que tecnicamente nos abnegando a fazer da vida uma obra de arte.
Em nossa ingrata espera por milagres que nunca nos acontecem, nos distraímos com o que estiver mais a mão. Casamos e temos filhos, e nos tornamos irredutíveis em nosso apego a religiões, partidos e times de futebol. Existimos.
Eu escrevo.
Tento falar sobre bengalas e coisas do gênero, mas há endemoniados temas sérios que não param de me acorrer.

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves


domingo, 13 de julho de 2008

É...

Pois é



José

é.


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Desvelo

É como quando, ao adormecer ou despertar, nos encontramos suspensos.

Quando a indefinível sensação do vácuo sempre a espreita adquire realidade física num silêncio ensurdecedor.

Privada de todos os sentidos, a vã consciência vaga, prisioneira da suprema liberdade de não diferenciar sono ou vigília.

No entanto, para todo sempre, percebe-se condenada.

Abrem-se os olhos.


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Aulas de oficinas

- Depois que descobri que o movimento surrealista foi o mais retumbante fracasso em termos de literatura, minha vida não foi mais a mesma.
- Sério? Por quê?
- Porque eles ambicionaram demais e conseguiram de menos, ou seja, imaginaram que a escrita automática revelaria o lado mais puro da escritologia, mas desconhecendo que a linguagem literária obrigatoriamente segue uma estrutura linear e diversa da estrutura da consciência, estavam fadados ao fracasso.
- Bah! Mas isso eu sei! Quero saber por que sua vida nunca mais foi a mesma depois dessa merda.
- Passei a escrever tipo assim:
Prólogo:
- Esse?
- Não.
Cânones regras e dogmas
- Esse aqui, com uma mochila dentro.
E uma pedrada, uma roubada, uma corrida.
Epílogo:
- Que que tem dentro?
- Livro... Caderno... Mulher pelada!
- Fan-zin-ne? Per-ver-sor?
- Chama Jesus de filho da puta!
- E daí?
- Sou religioso, respeito Jesus.
- Meu! Jesus diz pra não roubar!
- Só se for dos ricos pra dar pros pobres.
Fim
- Ihhhhhh! Gostei não...

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves



Noir no ar

Ao iniciar no novo emprego sentiu-se como numa daquelas histórias policiais noir. Numa do Raymond Chandler, mais especificamente. Tardes de calor intenso, e quase nenhum movimento no escritório de duas peças e banheiro. Freecell ao invés de xadrez, e água Timbú de galão no lugar de uísque.

Um sujeito entra, fanho e gago, procurando por alguma Rosinéia, ou Rosicléa. Uma fração de segundo antes de soltar o bordão: "Cem dólares mais as despesas", lembra-se que o trabalho de um recepcionista não inclui buscar pessoas desaparecidas. Com a postura cortês exigida por sua função, desculpa-se por não poder ajudar e indica a loja da frente como possível fonte de informações.

Distrai-se adivinhando a profissão e o destino das pessoas. Moto boys com encomendas para o escritório de contabilidade ao lado - talvez seja só fachada; gente bem tratada chegando à agência de turismo no segundo andar. Sua esperança é ver surgir à sua porta alguma mulher-fatal, fazendo biquinho enquanto demonstra em que nível está seu francês.

Sente-se capaz de apostar que, feita uma pesquisa rigorosa na França, a quantidade de bichas por metro quadrado será maior que a média do restante da população mundial, em relação direta com a língua pátria. Mais ou menos como se o mundo fosse o Brasil e a França fosse o Rio de Janeiro. Especula então sobre a Bahia. Provisoriamente, pensa identificá-la com a Argélia. Mas certeza mesmo, apenas de que o Rio Grande do Sul é a Alemanha.

Assim como Philip Marlowe nos Estados Unidos do século passado, também ele sente-se realizado ao resolver questões de suma importância por um preço quase irrisório. O homem deve seguir sua vocação.

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Postagem original

domingo, 6 de julho de 2008

Adulterado

O ideal é estar-se embriagado, para não sentir o frio. Fazer alguma coisa ao contrário, do avesso, só pra ver se vice-versa.

E de repente, com um pouco de sorte, é alquimia. Surpresa! As certezas agora são outras, o que devia machucar excita e tudo de bom causa náuseas.

Para toda vida os planos serão outros. Para todas as vidas. E tanto faz se é porque pouco importa, ou porque importa demais.

Não é mais pelo sexo, nem por dinheiro, nem por medo e muito menos por amor. Não há mais que se doar sangue, nem brincar inocentes brincadeiras de esconder. Excessivamente pequeno para certas coisas, demasiado grande para outras.

Pois se já não somos mais homens, tampouco ratos. Mas a essa altura do campeonato, convenhamos, isso já não deveria ser surpresa para ninguém.


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

O último dos dinossauros modernos

Você sabia que o velociraptor tinha penas? Ele é aquele dinossauro menor que é abocanhado por um tiranossauro na hora em que vai comer uma das criancinhas do filme O Parque dos Dinossauros. Só que lá ele aparece pelado, como um lagarto.

Um erro que foi muito comum, sendo reproduzido em revistas científicas nacionais e internacionais. Hollywood, ciência. Invenções humanas, cheias de falhas, nos fazendo imaginar errado as vezes pela vida inteira, sem sabermos ou nos incomodarmos.

Eu tenho guardado aqui em casa um fandangossauro. Achei dentro de um livro, que pelo jeito não era aberto há anos. Está em perfeito estado de conservação, nunca foi colado. Pra quem não sabe, o fandangossauro é uma espécie rara de dinossauro, um estegossauro colorido e sorridente, que tem nas costas uns fandangos gigantes no lugar das plaquetas. O conjunto todo tem um ar meio bobo, com o objetivo aparente de agradar os consumidores infantis. Faz parte de uma coleção de figurinhas lançada vários anos atrás pela Elma Chips, no tempo em que eu era criança.

Engraçado que naquela época eu nem dava bola pras figurinhas. Ia ao mercado aos sábados com meu avô, e no carro mesmo voltava comendo Cheetos com danoninho. Segundo a minha mãe, foi esse tipo de hábito alimentar pouco saudável que estragou a minha saúde, me deixando menor e mais fraco que todos os meus irmãos e primos.

A tal da figurinha me despertou um saudosismo daqueles sábados. Do barulho da Variant do vô acordando a gente bem de manhãzinha; da vó xingando pela casa, "Que pressa que tem que ir correndo tudo!"; da confusão fervilhante de pessoas e carros na frente dos Mercados Chamma, aquelas se atravessando e atrapalhando as manobras destes, que por sua vez cometiam barbeiragens tão grandes que faziam meu avô - motorista profissional por mais de trinta anos - proferir palavras de um calão realmente baixo num tom realmente alto de decibéis. De cada vez
a vó replicando: "Credo Pedro!", e fazendo o sinal da cruz.

Já faz alguns anos que a figurinha está comigo, e eu fico imaginando se o saudosismo vai aumentar com o tempo. E se eu, com menos de trinta anos sinto uma coisa dessas, imagine se nós ressuscitássemos o tal do velociraptor da Mongólia - que morreu faz uns sei lá quantos milhões de anos atrás, supostamente sob um deslizamento de areia, engalfinhado com um protoceratóps - e mostrássemos uma das figurinhas da infância dele, o saudosismo que o bicho não haveria de sentir!

Ultimamente quando passo na casa do vô e vejo as mesmas coisas, no mesmo lugar em que sempre estiveram desde que eu posso me lembrar, é inevitável que eu comece a divagar. Vai me dando uma sensação estranha, que não é ruim nem boa, que eu acho que é a sensação que se tem quando se é muito velho, e sabe que as coisas são como são, e que tudo está como está porque é bem assim mesmo que é pra ser, inclusive essa minha vontade doida de ir contra, mesmo que eu acabe soterrado sob o peso de todas as coisas contra as quais eu não tenho como lutar.

Aí eu desperto do transe, vou até o banheiro, jogo uma água no rosto e fico fazendo cara de Clint Eastwood. Nesse momento, concentrado no fundo dos olhos da minha imagem refletida, me percebo orgulhosamente como o último dos dinossauros modernos.

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves


Postagem original