domingo, 30 de dezembro de 2007

Internatos

Tenho em um de meus braços
dois pêlos entrelaçados
crescendo por baixo da pele
Cravados! Cravados! Cravados!

As vezes rasgo-me o couro
e arranco-os fora de mim
mas eles recrescem de novo,
fazidos,
feridas sem fim.

Carrego no fundo da alma
desejos, mil, frustrações
que qual doença corroem
lides, forças, aspirações.

As vezes implodo-me inteiro
tal o jugo de seu peso
as vezes desando-me em choro
mas no mais das vezes,
não mesmo!



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Pingo d'Ouro

Tudo que sou hoje em termos de saúde e bem estar, devo à minha professora de história da sexta série, que me ensinou a dieta do mediterrâneo: trigo, azeite e vinho. Foi por causa dela que passei a me alimentar exclusivamente de Pingo d'Ouro e Campo Largo, o que me trouxe indubitáveis benefícios ao longo dos anos.

A ventura de conhecer a gaiola de uma daquelas ipanemas da PM por dentro, por exemplo, eu credito ao delicioso vinho Campo Largo - só que nesse dia acompanhado de xarope pra tosse, aquele que nos revela a verdade em sonhos, e não de farinha salgada artificialmente tratada para ter gosto de bacon fake.

Era uma tarde de Copa do mundo, muito tempo atrás, e como um ato simbólico eu joguei fora meu relógio, meu dinheiro, e sabe-se lá mais o que. Um Easy Rider sintético, doze horas de emoção alucinógena e redescobertas à flor da pele. Experiências xamânicas são uma porra da porra.

Eu não sei a troco de quê a polícia veio. Se pela pedrada na cabeça do meu amigo, pelo furto dos cds do Exaltasamba, ou pela ameaça de morte a um transeunte desavisado - desculpa aí senhor transeunte, na hora eu achei que falava com uma raposa.

Chato mesmo é a volta à realidade cotidiana, tendo-se uma vez viajado pelos confins do universo, testemunhando o indescritível. O que nos salva da morte por tristeza, nesses casos, é o nosso egoísmo. Porque morrer atropelado numa rua do interior é uma coisa besta, mas morrer numa batalha épica no fim dos dias é algo bem mais aceitável. Se não por honra ou coisas do gênero, pelo menos pela companhia...

É por essas e outras que eu tomei uma firme decisão para o resto da minha vida: entrar pelado em igreja de crente e postos de gasolina, nunca mais! Um cidadão responsável precisa cuidar da própria imagem, e agora estão instalando câmeras de vigilância pela cidade. Sabe-se lá o que esses burocratas pervertidos vão fazer com o meu filme.

Sem falar que esse tipo de notícia corre rápido demais. Passei pela Quadrangular numa quarta, e quinta já tinha gurias da Universal ligando lá em casa...



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves



Texto originalmente publicado aqui:

http://nossogarfodecadadia.blogspot.com/2006/07/pingo-douro.html

domingo, 23 de dezembro de 2007

Lei da selva

Ao invés de formarem uma rede adolescente de amizade e apoio mútuo, constituíram-se enquanto matilha. Território a proteger e hierarquia a seguir. Nenhuma misericórdia. Aquele que caísse, seria massacrado pelos próprios companheiros. “Se você morrer, esse tênis é meu.”

Apesar de nunca ter feito parte de seus quadros como membro efetivo, minha condição de tabu permitiu-me documentar seus atos e motivações, sua fúria destrutiva respaldada pela necessidade de sobrevivência. Um trabalho quase científico, uma opção pela mais perigosa e gloriosa das missões.

Eles perambulavam; dia e noite; pelas ruas, avenidas e carreiros. A urbe, em toda sua caleidoscópica extensão, era sua selva, tundra e savana. Magérrimos de não comer, engalfinhavam-se em entreveros com hienas e chacais das adjacências, quando não estavam a pular muros atrás de ração abundante, ou de cadelas no cio.

Eram o trabalho dos cães de guarda e o ódio dos proprietários, que esperando um capa preta para preservar a linhagem, viam nascer, do ventre das cachorras em que investiram tanto tempo e dinheiro, um dingo.

Pois era a sua raça, alcunha e distinção: Dingos. Cães domésticos abandonados em ambiente hostil, que após sucessivas gerações, acabaram por retornar a um estado de selvageria.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Ensaio sobre a fodeza

Acordei e percebi que ainda estava dormindo, mas essa não foi a maior de minhas surpresas. O fato é que eu me encoxava enquanto dormia. Preocupado, resolvi ir ao médico, tentar tratar do problema antes que alguém achasse que era viadagem.

Examinando os papéis com o resultado de uma bateria de exames, ele olhou para mim com uma cara entre surpresa e divertida e disse:

- Ao que tudo indica, seu problema é de excesso de fodeza.

- Como? – perguntei, sinceramente confuso.

- Todo ser humano tem uma capacidade X de fazer coisas fodas, e ao limite específico de cada um nós denominamos fodeza. É uma área muito nova da ciência médica, a fodologia. Eu me orgulho em ser um dos pioneiros do estudo da fodeza no Brasil e um dos mais renomados fodólogos do mundo. O seu caso é clássico, você tem um limite muito alto de fodeza, uma grande capacidade de fazer coisas fodas.

- Hummmm! Mas isso não seria uma coisa boa? Essa minha capacidade de ser mais foda que o resto do povo?

- Olha, uma coisa foda não significa necessariamente uma coisa boa. Essa sua habilidade de se encoxar, por exemplo, é uma coisa muito foda, que pouca gente conseguiria fazer. Mas até que ponto ela lhe traz benefícios? De fato, você não é nem mesmo o mais fodão dos meus pacientes, eu já tratei de pessoas com um nível de fodeza quase três vezes mais alto que o seu. Para elas, essa sua auto-encoxação seria apenas o início, se é que você me entende...

- Então eu posso ir embora sossegado. Ninguém precisa saber que eu me encoxo durante o sono.

- Na verdade não é tão simples assim. Eu deixei para lhe explicar por último, mas a sua principal "característica" não é sua fodeza, e sim sua resistência sobre-humana à fiascagem. Eu nunca tomei conhecimento de nada parecido, mas basta você entender que uma pessoa comum morreria fulminada como que por um raio se a taxa de fiascos em seu sangue chegasse a um décimo da que os exames indicam como a média para você. Na verdade eu acredito que você se encontra em um estágio em que mais do que suportar, seu organismo necessita de uma elevada taxa de fiasco na veia. Você é um viciado em fiasco, um fiascólatra. Eu recomendo que você procure o mais rápido possível o fiascólogo cujo endereço estou lhe repassando, bem como o F.A., os Fiascólatras Anônimos.

Despedi-me polidamente e dali mesmo me botei a procurar pelo consultório do fiascólogo recomendado, num edifício caro bem no centro da cidade. No meio do caminho, em uma praça muito movimentada, não resisti e parei para me encoxar em público. Logo uma pequena multidão de curiosos se formou ao meu redor, alguns assobiando, outros me atirando moedas. Foi nessa hora que ouvi alguém falar em viadagem. Na mesma hora, sem interromper minha ação, olhos inflamados e face congestionada, passei a gritar para a multidão só fazia avolumar:

- Viadagem nada! FO-DE-ZA!!!!

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Texto originalmente postado no blog nossogarfodecadadia em 9/03/2006 07:39:00 PM

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Criançada Pistoleira



Vídeo baguazudo de antigamente, reparem na alegria da criançada contrastando com o constrangimento disfarçado da apresentadora. O título é em homenagem a uma música do Gordinho que a gente adaptou.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Machismo misógeno

Reza a lenda que os sapos espirram um leite branco cujas propriedades afrodisíacas têm por efeito cegar as fêmeas da espécie humana. Na verdade, os príncipes também. Estudos sócio-culturais e biológicos apontam razões distintas porém complementares no entendimento de porque diferentes parcelas e faixas etárias dos seres humanos do sexo fêmea preferem ser cegadas por sapos, enquanto que outras são fervorosas adeptas do “lacto-régium”.

Apesar de ser de domínio público que se devidamente osculado, mesmo o sapo de seus pesadelos poderá tornar-se no príncipe dos seus sonhos, há forte resistência da comunidade científica em aceitar este argumento como explicação definitiva para as até agora incompreensíveis flutuações comportamentais femininas no caso em questão, uma vez que as experiências efetuadas até agora indicam tratar-se de uma via de mão dupla, com sapos emprincipando e príncipes sapeando conforme o progresso da embeijação.

As mais avançadas teorias sobre o assunto sustentam que a suposta transmutação – traduzida na equação alquímica: sapo/príncipe = príncipe/sapo – não passaria de um tipo de auto-hipnose, desencadeada pelo estímulo desenfreado a certas áreas excessivamente suscetíveis da psique de algumas fêmeas, as quais em estado próximo ao do transe místico, chegariam em casos extremos a induzir as demais à uma espécie de frenesi grupal através de uma complexa rede de atos cuja simbologia agiria diretamente sobre o inconsciente coletivo.

Nesse sentido é emblemático o caso da belga Daphne Duvall* , que em meados dos anos oitenta tentou processar por falsidade ideológica um membro da dinastia Du Maurier**, alegando que durante suas núpcias este revelou-se não como o príncipe esperado, mas como um sapo coaxante. Testemunhas osculares e vídeos do acontecido acabaram por demonstrar como Dee Dee***, em seu delírio, atribuía a seu macho qualidades inexistentes, revelando que todo o caso não passava de uma pequena aleitada seguida de um sonoro arroto.

A partir do apresentado, a tendência atual é concluir que o sapo de uma é o príncipe de outra, muito embora grupos feministas já estejam articulados para combater em várias frentes o que classificam como “darwinismo sexual”, sendo que alguns dos mais extremados estão sendo investigados por suspeita de terrorismo, como a explosão de diversos símbolos ao redor do mundo que poderiam ser classificados como “falicamente opressores”.


*Nome fictício adotado para proteger a identidade dos envolvidos.

**Idem

***Apelido fictício adotado para proteger a identidade dos envolvidos



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Pão e carne

Chupão na virilha é sinal de compromisso em certas culturas. Hoje sei perfeitamente, mas naquela época eu era jovem e inexperiente nesses assuntos de amor, e nem desconfiava que a mulher no chuveiro já me considerava sua propriedade.

Eu dormia inocentemente, sonhando que minha avó fritava pastéis para o almoço enquanto eu me refestelava no sofá da sala, sob o sol que entrava pela janela esquentando a minha cara. Foi duplamente estranho acordar no quartinho do hotel. Por um lado, fiquei triste ao me dar conta que não haveria pastéis para comer, por outro, feliz em relembrar que nem só de pão o homem viverá.

É minha vez de tomar banho, e eu deixo minhas roupas sobre a cadeira. Saio do banheiro buscar xampu, bem a tempo de ver a doidona trancar a porta e sair vazada com toda a sua bagagem. Mais as minhas roupas. Minha inexperiência não se estende a outras áreas, tais como arrombamentos, e em pouco tempo eu estou pelado no corredor, procurando por algum funcionário ou hóspede que me descole um xampu.

O cara da portaria me arranjou uma calça, um par de chinelos e uma camiseta velha, curta demais para mim. O quarto está pago até a uma hora da tarde de amanhã, e eu resolvo passar a noite e esperar pelo café grátis a que os hóspedes têm direito todas as manhãs.

Lá pelas sete da noite, ouço um barulho na porta quando a guria está voltando, vermelha e ofegante com o esforço de carregar sozinha toda a bagagem.

- Onde você foi?

- Comprar passagens de volta.

- E pra que levar minha roupa?

- Sou ciumenta. Vai que você foge?

- E pra que levar suas malas?

- Sou desconfiada. Vai que você me rouba?

- Tudo bem, você está certa. O negócio é esperar até amanhã, e tchau.

- Não. Você vai comigo. E mostra que tem duas passagens para sua terra.

Ciumenta, desconfiada, impulsiva e possessiva. Fico pensando num jeito de dopar essa guria e levar embora todos os seus pertences. E roupas. Mas talvez, se ela estiver disposta a me sustentar, seja uma boa idéia perder uns dois ou doze anos ao lado dessa magrona.

Mas isso eu decido só amanhã, depois do pão com mortadela.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves


Obs: Texto originalmente postado em: http://nossogarfodecadadia.blogspot.com/ e repostado aqui pq venceu na enquete satânica. Se der na telha vá lá e procure. Senão não.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Anões, duendes, elfos, leprechauns, gnomos, napoleões e pequenininhos em geral



Sempre escrevi textos curtos, pois sempre me atraiu a idéia de expressar o máximo através do mínimo. É como espremer uma laranja, um limão, uma espinha... Quiçá talvez até como quem sabe dar a luz ou largar um barro, conforme se analise a questão.

Lembro de haver lido alguma coisa nas apostilas do segundo grau sobre o modernismo e o tal "poema-pílula". Conhecimentos largados nalgum canto junto a pilhas de gibis, livraiadas best-seller dos anos vinte aos oitenta; clássicos dos clássicos, sagrados e irrepreensíveis; e aos mais diversos tipos de manuais sobre práticas várias.

Mas foi no orgute que me detive, ainda que rapidamente, sobre minis, micros, poetrix e noviçaiadas quais. Mesmo como membro ativo e publicante do Bar do Escritor - comunidade do orgute que inchou e virou em blogs, sites e impressos - de onde surgiu o termo nanoconto, nunca dei muita bola para tais classificações estéticas.

É que eu sou um homem de meu tempo, e na pós (bem como na pré) modernidade, o que manda é a divisão do trabalho. Então a coisa ficou assim: eu escrevo, e quem quiser que analise. Deixo aqui dois textos de uma linha, um mais poético e outro mais prósico. Caso alguém se disponha a explicar o porquê, tão aí.




Sentidos

Cultivava o duvidoso hábito de guspir no prato em que comia. Mas era só da boca pra fora.



A estrela e o fio de luz

Escondi uma estrela atrás de um fio de luz.


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves



sábado, 8 de dezembro de 2007

Sobre jardineiros e borboletas

Minhas unhas compridas e sujas e a barba por fazer são prova cabal de que tenho dedicado mais tempo a correr atrás das borboletas que cuidando do meu próprio jardim.

Um esforço sabidamente inútil, uma vez que invariavelmente elas avoam-se embora sem ao menos agradecer a atenção dispensada, talvez julgando-a uma atenção não requisitada, ou talvez pelo simples fato de que borboletas não sabem falar tão bem quanto voar.

Assim sendo, como comunicariam tais intrincados sentimentos e emoções? Possivelmente com as asas, voejando ao nosso redor em uma coreografia cujo significado nos fosse, atávica ou inconscientemente, peculiar. Talvez – e é nisso que acredito com mais firmeza – através do olhar.

Decifrar porém, nos milhares de olhos de uma borboleta o significado específico do olhar a nós dirigido é indubitavelmente uma tarefa inglória. O duplo risco de intencional ubiqüidade e erro ou incapacidade de interpretação é suficientemente desanimador para a maioria daqueles que alguma vez tenham se dedicado à tarefa.

Incapacidade interpretativa aliás, deve ser o mal de que padeço, uma vez que enxergo sempre no olhar de minhas borboletas uma luz ou promessa que as atitudes teimam em desmentir.

Mas minhas unhas compridas e sujas e minha barba por fazer podem muito bem ser o registro, inscrito em meu próprio corpo, de que nada mais tenho feito na vida do que trabalhar em meu jardim.

Talvez isso seja o que me deu a oportunidade de observar tão de perto os olhos de tantas borboletas, ao mesmo tempo em que impediu-me de capturar qualquer uma, posto que a preparação do jardim para aquela que prefira voluntariamente pousar em minhas mãos sempre foi a tarefa mais urgente.

Talvez assim se possa dizer que o problema reside mais nos olhos da borboleta que no jardim de que até bem pouco tempo eu costumava me orgulhar.

E embora a solidão do quarto branco não sirva como testemunha fidedigna, eu sei com que desesperada convicção tento me aferrar a tal idéia na imensidão fria de mais esta madrugada.

Afinal de contas, para que servem os malditos milhares de olhos de uma borboleta que não sabe ler?



Observação: Eu sei que as borboletas não tem milhares de olhos, e sim um par de olhos compostos chamados omatídeos. Mas azar.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves