domingo, 28 de setembro de 2008

Menina do bucho oco

Da vida bonita que nasce contigo
de coisa alguma
do oco que sai.

Cabeça oca
do bucho vazio
deixa comigo que eu deixo pra lá.

Polaca seca do zóio de vidro
disse pra mim: "sair dói demais!"

Foi ao banheiro metida a dar cria
deu tanta merda que entupiu o vaso.

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

Sonhos


Você é um sonhador - ouvi de certa feita. E os sonhos eram coisas ruins, conforme aprendera. Os sonhos impediam a realização de conquistas práticas.

Mas se foi através dos sonhos que garanti a mim mesmo, após vinte e sete anos de luta intensa, uma adolescência de Tom Sawyer!
- Quê? Sou ruim de inglês.

Foi através dos sonhos que me mantive criança conforme, com o decorrer dos tempos, conquistei respeitos díspares, e ascendi ao infinito para constatar de uma vez por todas que a maior das subidas fatalmente acabará nos mais profundos interiores de lá de baixo...
- É que quando eu crescer eu quero um Audi.
Mas esses que lhe ensinaram sonham também! Com democracias brancas e carros importados, e vagas para estacioná-los sempre em frente às portas que se deseje entrar, e um mundo de luxúria sem preço, onde não sejam importunados por pedintes fedidos ou bêbados, ou sejam obrigados a confrontar as conseqüências de seus atos e desejos, um paraíso da ação sem reação.
- Não... é que como é que eu vou dormir... se meus sonhos são sempre tão recheados de gente morta?

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves


sábado, 20 de setembro de 2008

O pecado da carne

Eu sabia que era errado, mas não podia evitar. Estranho hábito... estranho prazer... Mutilar carne alheia.


Uma tal afronta, repetidamente cometida, não poderia passar em branco. E a vingança foi exigida e cobrada da forma mais ardilosa.


Paguei pela única falta não perpetrada, mas mesmo aí não senti remorso, apenas a indigna humilhação de haver sido passado para trás.


À mesa do almoço, encarando faces lívidas por sobre os filés sem mignon.




Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves



Que vontade de tocar instrumentos de soprar!



Dizer que não tinha vontade antes seria mentira. Mas foi na festa de aniversário de um ano da prima Janaína que começou a percebê-la como uma necessidade.

Fora ao aniversário só por causa dos brigadeiros, que a parentada mais velha ele via sempre, não precisava de festa pra isso, e os mais novos ele pouco conhecia, entendia, ou se importava. Eram de um comportamento diferente, a seu ver mais idiota, e se preocupavam mais com ficar bonitos do que fortes.

Assim, após empanturrar-se a ponto de sentir que sua barriga ia estourar, pouco lhe restava a fazer além de sentar e esperar pela hora de ir embora. Ou quem sabe pelo fim do mundo. Sempre fazia esse tipo de consideração quando bebia em locais inadequados, como festas de família, pois nessas horas era tomado pela enorme melancolia de saber-se um ser controlado por regras e convenções, incapaz de extrapolar, transcender e comunicar a todos aquilo que ia em seu íntimo.

E o que ia em seu íntimo era a solidão de toda uma vida. Trinta anos de desilusões e expectativas frustradas, as quais aceitava com uma mansidão resignada que se estampava em sua face e fazia as pessoas imaginarem-no um parvo. Por isso riam à sua volta, e insultavam sua inteligência e sensibilidade os grandes e os pequenos, fazendo-o afastar-se e procurar outra forma qualquer de distração.

Encontrou-a na forma de uma corneta, sua distração. Assoprou-a de início timidamente, testando os sons e as intensidades. E pouco depois a tocava com vigor, pú-pú-pú-púúúú,pú-pú-pú-púúúú, incomodando primeiro os mais próximos e logo após todos os que se encontravam no amplo salão de festas. Pú-pú-pú-púúúú, pú-pú-pú-púúúú. Tanto fez, que tomando-o por demasiado embriagado um tio logo dispôs-se a levá-lo embora.

Embora foi, mas sua nova mania ficou. No salão de festas, a geração mais nova atentou os parentes por horas a fio: pú-pú-púpú. Eles não tinham o mesmo domínio sobre o instrumento que seu parente mais velho demonstrara. Em casa, e mesmo nas ruas, treinou e treinou, fazendo os cachorros das redondezas uivarem de alegria: Pú-pú-pú-púúúú! Decidido, juntou umas economias e comprou um trompete.

Logo passou a ter aulas também, nas quais se revelou um grande talento. Mas para desespero dos entendidos, era demonstrar que podia, e recusar-se a tocar qualquer música existente. Seu único prazer era pú-púzear livremente, e em nome deste, largou tudo o mais. Intimamente meditava: "E não é que querem impor convenções à minha música também?"

Desde cedo ele o sabia, mas não cansava de se espantar. Tudo o que lhe diziam revelava que as pessoas acreditavam que convenções sempre houveram, e o que calavam revelava que criam que sempre haveriam. Na matemática, física e química, nas relações sociais e na literatura. No céu, na terra, no fogo, no mar e no ar. O mundo em que viviam era uma convenção e as pessoas eram convenções ambulantes. Em meio a tudo isso: Pú-pú-pú-púúúú. Uma única verdade a ser alardeada.

Precursor de uma nova onda, morreu aos quarenta e sete, de bronquite, na esquina da Sunset Street com a Florisbela Boulevard. Diz-se que poderia ter-se salvo, caso parasse de pú-púzear a tempo, e que ainda hoje se podem ouvir ecos de seus pú-pús pelas ruas do quarteirão. Careca e barbudo, era a cara do Mister Natural. Seu nome era Hermínio João.

Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

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